segunda-feira, 30 de março de 2009

Humanidade e Animalidade - Tim Ingold


A humanidade é o tema peculiar da antropologia. Dito desta maneira parece fácil; difícil é imaginar como se deveria construir uma ciência da humanidade. Este artigo é uma tentativa de mostrar como fazê-lo. O leitor talvez considere minha proposta exageradamente estreita ou, ao contrário, tão ampla que chega a ser impossível. Se concordar com a primeira opinião, o leitor talvez reaja, dizendo: "Mas como, uma ciência da humanidade? Não seja ridículo! O Homo sapiens é apenas uma espécie entre milhares e, além do mais, relativamente recente. Será que vamos ter uma ciência separada para cada espécie animal?" Mas, se o leitor defender a segunda opinião, objeções dessa natureza parecerão totalmente deslocadas. Estudar a humanidade, dirá esse segundo leitor, não é apenas esmiuçar as idiossincrasias de uma espécie particular, de um diminuto segmento do mundo da natureza. Trata-se antes de abrir à pesquisa um mundo que se multiplica interminavelmente na exuberante criatividade do pensamento e das ações das pessoas em todos os lugares. A tarefa parece impossível porque o tema está sempre extrapolando os estreitos limites de nosso entendimento. Como somos, nós mesmos, humanos, o problema não está em não termos logrado reduzir a humanidade a proporções analisáveis, mas em jamais sermos capazes de acompanhar o passo de suas transformações. 

A verdade é que essas duas opiniões opostas se fundamentam em concepções radicalmente distintas do que a humanidade é, ou deveria ser. A melhor maneira de demonstrar essa diferença é examinar a maneira pela qual as noções de humanidade e de ser humano determinaram, e foram, por sua vez, determinadas, pelas idéias acerca dos animais. Para nós, que fomos criados no contexto da tradição do pensamento ocidental, os conceitos de "humano" e "animal" parecem cheios de associações, repletos de ambigüidades e sobrecarregados de preconceitos intelectuais e emocionais. Dos clássicos até os dias de hoje, os animais têm ocupado uma posição central na construção ocidental do conceito de "homem" - e, diríamos também, da imagem que o homem ocidental faz da mulher. Cada geração reconstrói sua concepção própria de animalidade como uma deficiência de tudo o que apenas nós, os humanos, supostamente temos, inclusive a linguagem, a razão, o intelecto e a consciência moral. E a cada geração somos lembrados, como se fosse uma grande descoberta, de que os seres humanos também são animais e que a comparação com os outros animais nos proporciona uma compreensão melhor de nós mesmos.

O artigo divide-se em três partes. Na primeira, analiso a definição de homem como espécie animal, compreendendo todos os indivíduos que pertencem à categoria biológica de Homo sapiens. Mas, como reconhecer o que é ou não é um ser humano? Esta é uma pergunta que praticamente não nos incomoda nos tempos atuais, em que o mundo está inteiramente aberto às viagens e às comunicações; desse modo, acreditamos conhecer todo oamplo espectro da variedade humana. Mas a pergunta foi um grave tormento para nossos antepassados, no início das explorações coloniais, e, se nos dispusermos a formulá-la de novo, veremos que não é mais fácil para nós respondê-la do que foi para eles obter uma resposta capaz de resistir a um rigoroso escrutínio crítico. Na segunda parte do artigo, introduzo um significado alternativo de ser humano, como condição oposta à de animal. Essa condição é a existência humana, que se manifesta numa aparentemente inesgotável riqueza e diversidade de formas culturais, perfeitamente comparáveis à diversidade das formas orgânicas na natureza. Na terceira parte, mostro que a associação popular entre essas duas noções de humanidade, como espécie e como condição, deu origem a uma concepção peculiar da singularidade humana. Em vez de distinguir os humanos dos outros animais, assim como estes diferem entre si, atribuiu-se a diferença a certas qualidades em relação às quais todos os animais são vistos como essencialmente iguais. A fim de superar o antropocentrismo inerente a essa concepção, temos de repensar toda a questão. Uma coisa é perguntar o que é um ser humano, outra muito diferente é indagar o que significa o ser humano. Começo pela primeira questão.


Uma questão de ter ou não ter cauda

No ano de 1647, um tenente da marinha sueca chamado Nicolas Köping servia a bordo de um navio mercante holandês na baía de Bengala. Certo dia, o navio aproximou-se de uma ilha onde seus habitantes, nus, portavam caudas semelhantes à dos gatos e tinham um porte felino assemelhado, segundo reportou Köping. Remando em suas canoas ao lado do navio, os nativos - evidentemente habituados a comerciar - ameaçaram invadir o barco holandês e tiveram de ser afastados a tiros de canhão. Mais tarde, o comandante do navio mandou à terra uma equipe de cinco marinheiros com a missão de encontrar provisões na ilha. Eles nunca voltaram; uma busca organizada na manhã seguinte apenas encontrou seus ossos ao lado de uma fogueira ainda quente, além do barco, do qual tinham sido sistematicamente arrancadas todas as cavilhas de ferro. 

Posteriormente, o relato de Köping foi retomado em um dos tratados de Lineu por um aluno seu, Hoppius, em 1760. Os homens que tinham caudas foram classificados como uma espécie de macaco, apropriadamente chamada de "lúcifer", e ilustrados por um desenho (à direita) que Lineu havia coligido em outra fonte(1). Um juiz escocês, erudito e excêntrico, de nome James Burnett, também conhecido como Lord Monboddo, foi um dos que leram a exposição de Hoppius. No primeiro dos seis volumes de sua obra, intitulada Of the Origin and Progress of Language, publicada entre 1773 e 1792, Monboddo pôs-se a demonstrar as continuidades e os contrastes entre os homens e os outros animais, além de caracterizar a condição da espécie humana em seu estado "natural" ou "selvagem". Fascinado pela história dos homens que tinham caudas, sua primeira preocupação - muito correta, aliás - foi checar a veracidade do relato. Através de uma correspondência pessoal com Lineu, Monboddo pôde certificar-se das credenciais de Köping como informante confiável e escrupuloso, cujas descrições da vida animal e vegetal, que observara em sua viagem, se mostraram precisas em outros assuntos. Não havia como pôr em dúvida, portanto, que os habitantes da ilha realmente tivessem caudas. Mas seriam eles realmente humanos? Quanto a isso, Monboddo novamente não tinha razões para duvidar, pois, em seu relatório, Köping revelara que os habitantes da ilha conheciam a arte da navegação, estavam acostumados ao comércio e faziam uso do ferro (Burnett, 1773, pp. 234-9). 

A percepção que hoje podemos ter do passado torna fácil reconhecer um componente de fantasia na narrativa de Köping e achar que Monboddo foi muito tolo por se deixar envolver pela história. Contudo, é possível que Monboddo tenha errado pelas razões certas. Prevendo a incredulidade de seus leitores, Monboddo habilmente virou o argumento contra a crença convencional: 

Estou ciente, porém, de que todos aqueles que acreditam que os homens são e sempre foram os mesmos em todas as épocas e em todas as nações do mundo, e da maneira como os vemos na Europa, considerarão esse relato inacreditável; de minha parte, estou convencido de que ainda não descobrimos toda a multiplicidade da natureza, nem ao menos em nossa própria espécie; e, no meu entender, a coisa mais inacreditável que se poderia dizer, ainda que não houvesse fatos para refutá-la, é que todos os homens, nas mais diversas partes da Terra, são iguais em tamanho, aparência, formato e cor. 

Não resolve desconsiderar o testemunho sobre a existência de pessoas que têm cauda com a observação de que "os humanos simplesmente não são assim". Se algumas populações têm pele branca e outras, negra, se alguns são extremamente altos, enquanto outros têm uma estatura diminuta, por que não seria possível que uns tivessem rabo outros não? Monboddo certamente achava que não era mais extraordinário ter um rabo do que ter a pele negra e sem dúvida não acreditava que qualquer dessas características proporcionasse um critério válido para lançar seus portadores para fora dos limites do gênero humano. Não devemos nos deixar levar pelas concepções estreitas e eurocêntricas do tipo de coisa que é um ser humano. Isso porque, continuava Monboddo, o gênero humano não é fixo e imutável; ao contrário, ele é variável tanto em termos históricos quanto geográficos. Essa variabilidade é o traço distintivo da espécie animal, a bem dizer uma característica de toda a natureza viva e, a esse respeito, o ser humano seguramente não é uma exceção (Burnett, 1773) (2).

 

 

 

 

 

A biologia moderna, que sofreu uma reestruturação radical após as descobertas de Darwin publicadas em A origem das espécies (em 1859), apóia as idéia de Monboddo: não, talvez, no assunto dos rabos, mas certamente em sua franca e aberta rejeição da noção de uma forma essencial de humanidade, da qual todos os seres humanos concretos, no passado, no presente e no futuro, são encarnações mais ou menos perfeitas. Temos de concordar com Monboddo, contra seus contemporâneos, na afirmação de que os humanos não têm o mesmo "tamanho, aparência, formato e cor" em todos os lugares. Mas seria certo concluirmos, então, que os humanos surgem dentro de uma ampla variedade de padrões de tamanho, aparência, formato e cor, mais ou menos como casacos comprados prontos numa alfaiataria - de tamanhos grande, médio e pequeno, brancos ou negros, com rabo e sem rabo? Por um bom tempo persistiu em nosso século a idéia fundamentalmente equivocada, e ainda predominante em certos círculos, de que seria possível construir uma tabela de "tipos humanos". Mas os seres humanos individuais não são encarnações de "tipos", assim como também não têm uma essência única, característica da espécie. Em termos biológicos, a humanidade se apresenta como um campo contínuo de variação, composto de uma miríade de diferenças sutilmente graduadas. Toda e qualquer divisão desse campo é uma construção nossa, produto artificial de nosso pendor para a classificação e os estereótipos. Os seres humanos reais não podem ser enquadrados em categorias artificiais; é esta precisamente a razão pela qual casacos que se compram prontos, modelados para vestir um tipo e não um freguês específico, nunca nos caem perfeitamente bem. 

Na realidade, os indivíduos pertencentes à espécie Homo sapiens apresentam um notável grau de variabilidade. Entretanto, o que vale para nossa espécie também vale para todas as demais: isto é, elas não são classes de entidades distinguíveis pela posse por parte de cada um dos seus membros de um atributo único, ou de um feixe de atributos. Em outras palavras, as espécies biológicas não são tipos naturais (Clark, 1988, pp. 20-1). Os grãos de sal constituem exemplares de um tipo natural, porque cada grão tem a composição molecular e a estrutura cristalina do cloreto de sódio. Mas as moléculas que regem a constituição das coisas vivas são muito mais complexas, sendo a mais importante delas o ácido desoxirribonucléico (ADN). Como sabemos, os genes, unidades básicas da hereditariedade, são codificados na estrutura do ADN, e, embora as espécies variem segundo a diversidade de seu material genético, em nenhuma delas se encontra uma estrutura única que subscreva o desenvolvimento de cada indivíduo da classe. Ao contrário, é a singularidade do indivíduo que distingue de maneira insofismável os organismos vivos dos objetos inanimados (Medawar, 1957). Como cristais, os organismos crescem, e, assim como os cristais, eles parecem ser dotados de uma estrutura invariante subjacente às transformações de seu aspecto exterior. Mas, se essa estrutura é igual em cada cristal de um elemento ou composto inorgânico, ela é diferente em cada organismo de uma espécie. Todo cristal é uma réplica, todo organismo é uma inovação. 

Como se pode concluir, então, a que espécie pertence um organismo particular? E, o que é mais importante, por que razão deveríamos incluir um animal na espécie Homo sapiens e excluir outro? O lúcifer de Lineu era um homem ou um macaco? Perguntas dessa ordem animaram séculos de acirrada controvérsia e, embora hoje em dia qualquer um de nós possa se declarar perfeitamente capaz de reconhecer um ser humano quando está diante dele, ainda há uma aguerrida disputa sobre como os princípios da taxionomia biológica devem ser aplicados. Para os fins deste artigo, basta observar que esses princípios são basicamente genealógicos. Os organismos não são agrupados em uma mesma classe por causa da semelhança de sua aparência formal, exterior, mas em virtude de seus vínculos genealógicos relativamente estreitos. De modo geral, os seres humanos realmente se parecem uns com os outros mais do que com os símios, e por não terem cauda são mais parecidos com os macacos do que os demais primatas. Essas semelhanças, contudo, são indicadoras de uma proximidade genealógica, e não de uma conformidade determinada a um tipo. 

Quanto mais estreitamente relacionados são os indivíduos, em termos de descendência, maior é a quantidade de genes que eles provavelmente têm em comum. Às vezes, quando uma característica visível é controlada por apenas um ou alguns genes, minúsculas variações na estrutura genética subjacente (ou genótipo) podem acarretar grandes conseqüências para a aparência geral do indivíduo maduro (ou fenótipo), de modo que indivíduos estreitamente relacionados podem apresentar aspecto muito diferente. Outras características, até mesmo as menos berrantes, podem ser controladas por um número muito grande de genes, de modo que a mesma quantidade de variações de genótipo seria praticamente imperceptível no fenótipo. Não resta dúvida de que, se os humanos tivessem rabo, variando de um pequeno toco a uma longa cauda pendente, assim como a cor varia do branco ao negro, alguns deles pelo menos poderiam se perguntar sobre o que seria mais difícil esconder: a cauda ou a cor. Felizmente, não temos esse problema, mas por razões que nem Monboddo nem os críticos de seu tempo poderiam saber. A quantidade de mudança genética necessária para tornar brancas as peles negras (ou vice-versa) é mínima, se comparada com o montante necessário para perder ou ganhar uma cauda. A diferença genética entre os primatas que têm cauda e os que não têm envolve um grau de desvinculação genética que é totalmente desproporcional ao pertencimento a uma só espécie. Portanto, não é preciso invocar uma forma essencial de humanidade, ou noções apriorísticas de como são os seres humanos, para descartar a possibilidade de existirem indivíduos com cauda dentro da espécie Homo sapiens, ou mais precisamente, para que se considere extremamente remota a probabilidade dessa ocorrência.

Os primeiros primatas sem cauda (eliminando-se os casos de mutilação acidental) não foram monstros promissores, mutantes grotescos pulando em meio a um bando de parentes portadores de longas caudas, a quem a sorte contemplou com a preservação de sua variedade nas futuras gerações. Como qualquer outra modificação evolutiva importante, as caudas foram-se tornando gradualmente menores, através de um processo de acumulação de diferenças mínimas, que perdurou ao longo de muitas gerações. A natureza, de acordo com a veneranda máxima, tão estimada por Darwin, não dá saltos ("Natura non facit saltum ", Darwin, 1872, pp. 146, 156), e ela também não segue um curso fixo e predeterminado. Aquele velho macaco sem cauda, cujos descendentes incluem tanto os seres humanos quanto os chimpanzés, estava tanto a caminho de se tornar um humano quanto de se tornar um chimpanzé. Estava sendo, nada mais nada menos, que ele mesmo. Um macaco é um macaco, não um arremedo ou uma tentativa parcialmente bem-sucedida de homem. Embora seja verdade que apenas uma só via pode ligar o macaco ancestral ao ser humano. moderno, essa via era apenas uma dentre inúmeras rotas possíveis que poderiam ter sido igualmente tomadas. Os seres humanos não tinham de evoluir.

Na perspectiva da evolução da vida como um todo, a linhagem humana representa apenas um pequeno e insignificante ramo de um esplêndido e frondoso arbusto. Cada ramo expande-se numa direção que jamais foi seguida antes e jamais será retomada. Os chimpanzés do futuro poderão ser muito mais inteligentes do que hoje, mas não serão humanos. Os seres humanos são animais que, pelo que me é dado saber, poderiam vir a ser os co-ancestrais de meus futuros descendentes. Como esses meus descendentes efetivamente se parecerão daqui a alguns milhões de anos - isso se não explodirmos a Terra antes, conosco dentro -, ninguém tem a menor idéia. Enquanto isso não acontece, continuamos a especular, como Monboddo, acerca das variedades de nossa espécie em termos surpreendentemente semelhantes. "Por volta de 1942", recorda o antropólogo Edmund Leach, "um inglês, considerado pessoa lúcida, garantiu-me com toda a convicção que, em um certo vale inacessível, visível do outro lado de uma fileira de montanhas, ele havia encontrado pessoalmente homens que tinham rabos" (Leach, 1982, p. 64). 


Ser humano e condição humana do ser

De modo geral, os filósofos têm tentado descobrir a essência da humanidade na cabeça dos homens, em vez de procurá-la em suas caudas (ou na ausência delas). Mas, na busca dessa essência, eles não se perguntaram sobre "o que faz dos seres humanos animais de determinada espécie?" Ao contrário, eles inverteram a pergunta, indagando: "O que torna os seres humanos diferentes dos animais, como espécie?" Essa inversão altera completamente os termos da questão. Isto porque, formulando a pergunta da segunda maneira, o gênero humano já não aparece como uma espécie da animalidade, ou como uma pequena província do reino animal. A pergunta faz alusão a um princípio que, infundido na constituição do animal, eleva seus possuidores a um nível mais alto de existência do que o do "mero animal". A palavra humanidade, em suma, deixa de significar o somatório dos seres humanos, membros da espécie animal Homo sapiens, e torna-se o estado ou a condição humana do ser, radicalmente oposta à condição da animalidade (Ingold, 1988, p. 4). A relação entre o humano e o animal deixa de ser inclusiva (uma província dentro de um reino) e passa a ser exclusiva (um estado alternativo do ser). 

Em 1749, o grande naturalista francês Conde de Buffon escreveu que não tinha dúvida alguma a respeito do tamanho do abismo que separa o ser humano mais primitivo do macaco, "porque o primeiro é dotado das faculdades de pensamento e fala", enquanto o segundo não oé. Quanto ao formato físico, porém, eles não são muito diferentes e "a julgar apenas pela aparência, tenho de admitir que o macaco pode ser considerado como variedade da espécie hurilana" (Buffon, 1866, vol. 2, p. 43). Tendo lido a Histoire Naturelle de Buffon, Monboddo pensava exatamente dessa maneira. Naquela época, os macacos antropóides eram geralmente chamados de orangotangos - palavra de origem malaia que significa "homem da floresta selvagem", e hoje indica uma espécie particular (Pongo pygmaeus), natural de Bornéu e Sumatra. Monboddo estava firmemente convencido de que os orangotangos eram humanos: 

Eles têm exatamente a forma humana; andam eretos, não de quatro como os selvagens encontrados na Europa; fazem armas com pedaços de madeira; vivem em sociedade; constroem cabanas com galhos de árvores; e roubam moças negras, que tornam suas escravas tanto para o trabalho quanto para o prazer. (...) Mas, se os aspectos acima mencionados levam a crer que eles pertencem a nossa espécie, e embora eles tenham feito grandes progressos nas astúcias da vida, não conseguiram desenvolver a linguagem." (Burnett, 1773, pp. 174-5). 

Ao contrário de Buffon, Monboddo acreditava que a qualidade humana do homem não se instalara desde o início como resultado da intervenção divina, mas fora adquirida por etapas e apenas se completou com a emergência da razão e do intelecto, as duas bases sobre as quais se assenta essa conquista especificamente do homem que é a faculdade da linguagem. Excetuando as ocasionais descobertas de "homens selvagens" - os quadrúpedes selvagens mencionados em seu relato -, os orangotangos representavam para Monboddo os entes vivos mais próximos que pôde encontrar de uma população humana vivendo em estado original de natureza. Por lhes faltar a linguagem e o intelecto, os orangotangos eram seres humanos que ainda não haviam atingido a condição humana de existir. Pertenciam a nossa espécie, mas tinham dado apenas um pequeno passo em direção à condição de humanidade. 

Os primeiros seres humanos - dos quais Monboddo não pôde encontrar indícios, mas cuja natureza podia ser facilmente inferida por meio de uma projeção regressiva- teriam sido totalmente carentes de "habilidades ou civilidade"; suas ações eram governadas pelo instinto e não pelo costume e viviam em um estado "que não passava do puramente animal" (Burnett, 1773, pp. 218-291; ver também Bock, 1980, pp. 19-26). E claro que se poderia dizer o mesmo da criança humana, corroborando uma analogia de grande tradição no pensamento ocidental que compara o processo de maturação do ser humano com a passagem da humanidade em conjunto do estado selvagem para a civilização. "Os selvagens", conforme declarou Sir John Lubbock, em 1865, "costumam ser equiparados às crianças, e essa comparação é não só correta quanto altamente instrutiva (...) A vida de cada indivíduo é um resumo da história da raça, e o desenvolvimento gradual da criança ilustra o desenvolvimento da espécie (...) Os selvagens, como as crianças, não têm nenhuma firmeza de propósitos" (1865, p. 570). 

Como condição oposta à da humanidade, a animalidade transmite uma noção da qualidade de vida nó estado de natureza, onde se encontram seres "em estado cru", cuja conduta é impelida pela paixão bruta em vez da deliberação racional e que são totalmente livres dos constrangimentos da moral ou da regulação dos costumes. Essa concepção da vida animal e da "animalidade humana" está extraordinariamente difundida no pensamento ocidental e ainda hoje dá o tom de boa parte do debate científico nos estudos sobre o mundo animal e o comportamento humano. Um traço marcante da tradição ocidental é a tendência a pensar em dicotomias paralelas, de modo que a oposição entre animalidade e humanidade é posta ao lado das que se estabelecem entre natureza e cultura, corpo e espírito, emoção e razão, instinto e arte, e assim por diante. Esse mesmo paralelismo é encontrado na divisão acadêmica do trabalho entre as ciências naturais - que se ocupam da composição e das estruturas do mundo material (inclusive organismos vivos) - e as "humanidades", que incluem o estudo da linguagem, da História e da civilização. Além disso, está subjacente às permanentes discussões entre cientistas integrantes de ambos os lados dessa fronteira acadêmica acerca do significado de "natureza humana".

O problema está no fato de que a herança do pensamento dualista invade até mesmo nossa concepção de ser humano, ao nos fornecer o vocabulário com o qual a expressamos. Segundo essa concepção, somos criaturas constitucionalmente divididas, com uma parte imersa na condição física da animalidade, e a outra na condição moral da humanidade. Em qual dessas partes, poderíamos perguntar, reside a natureza humana? A resposta depende da maneira como definimos "natureza", conceito dos mais polivalentes em qualquer idioma. Entre seus diferentes significados, podemos distinguir dois (quanto a estes e outros sentidos, ver Williams, 1976, pp. 184-9). Primeiro, a natureza de uma coisa pode ser uma qualidade essencial que todas as coisas dessa espécie, e apenas essas coisas, devem possuir. Sendo assim, trata-se de "um mínimo denominador comum" da espécie, que é universal e não particular para cada um de seus indivíduos. Segundo, natureza indica o mundo material, o macrocosmo das entidades físicas, na medida em que se distinguem de sua representação microcósmica no plano das idéias. Neste último sentido, o conceito de natureza classicamente se opõe ao de cultura, sendo o primeiro uma realidade externa e o segundo uma realidade que só existe "na cabeça das pessoas". 

Voltando a nossa pergunta inicial - a natureza humana reside em nossa animalidade ou em nossa humanidade? -, descobrimos que cada significado de "natureza" proporciona respostas conflitantes. Retomemos a opinião de Buffon, um bom representante de sua época, para quem os seres humanos se diferenciam dos macacos pela posse de faculdades do espírito, e não pelo aspecto exterior do corpo. O aspecto essencial dos seres humanos, portanto, é sua humanidade - aquele componente que, de acordo com a ortodoxia do dogma cristão, se deve a uma doação preferencial do espírito divino, concedida por Deus. Por outro lado, os seres humanos também participam do mundo material - ou da natureza na segunda acepção - na composição dos órgãos de seu corpo, e que o criador incluiu, ao lado dos corpos das demais espécies animais, "em um mesmo plano geral", como disse Buffon. Por conseguinte, pode se revelar os seres humanos como organismos biológicos em sua geração material, despojando-os de sua humanidade essencial e deixando à mostra um resíduo inato, comum aos outros animais. Essa é a camada de "animalidade humana" à qual Monboddo e outros estudiosos, antes e depois dele, fizeram referência ao falar em "estado bruto" da humanidade, que se supunha representar um fundamento universal e original de toda a evolução cultural e social. 

Apesar das revoltas teológicas subseqüentes à teoria da evolução humana de Darwin, na qual, naturalmente, não havia lugar para a mente ou o espírito, a não ser como produto de um órgão material (o cérebro), os termos do debate contemporâneo entre "cientistas" e "humanistas" sobre a natureza humana ainda se parecem muito com os do tempo de Buffon e Monboddo. Etólogos e sociobiólogos, partindo do paradigma da ciência natural, identificam a natureza humana com o que existe de animal em nós, alguma coisa que costuma estar tão encoberta pelos acréscimos da cultura que se torna mais diretamente, visível em outras espécies. Esses cientistas assumiram a tarefa de descobrir os protótipos das predisposições humanas universais no conjunto dos comportamentos, principalmente dos primatas não-humanos, embora a busca de analogias freqüentemente os conduza a outras divagações. Com efeito, boa parte do grande interesse popular pela pesquisa etológica decorre da crença de que, por meio do estudo do comportamento de outros animais, chegaremos a compreender coisas importantes a nosso respeito. Isso não deixa de ser verdade, mas, se levado ao exagero, pode fazer com que baseemos nosso entendimento da natureza humana em um amálgama de traços característicos retirados do conjunto de comportamentos de praticamente qualquer espécie, com exceção da nossa. A presteza com que alguns sociobiólogos tendem a tirar conclusões definitivas sobre a condição humana com base no estudo de insetos sociais, como as formigas e as abelhas, nos faz lembrar a piada de Will Cuppy, em How to Tell Your Friends from the Apes ("Como distinguir seus amigos dos macacos"), que diz que "a psicologia do orangotango já foi completamente descrita pelos cientistas, a partir de suas observações do ouriço-do-mar" (Cuppy, 1931, p. 38)(3)

Antropólogos e outros cientistas de inclinação mais humanista têm se preocupado em restaurar a "essência humana" que falta nas explicações sociobiológicas e etológicas . Como observou Eisenberg (1972), os cientistas humanistas acentuam "a natureza humana da natureza humana", substituindo a antiga noção de espírito pelo que tem sido chamado de "aptidão para a cultura". O sentido exato dessa expressão tem sido objeto de interminável controvérsia. É suficiente observar aqui que, situando a qualidade distintiva dos seres humanos no plano moral da cultura, em oposição ao plano físico da natureza, terminamos por reproduzir toda a essência da concepção de homem do século XVIII - dilacerado entre as condições de humanidade e as de animalidade. Ao que parece, apenas quando estão "existindo de modo humano", os seres humanos se revelam tal qual de fato são. 

Entretanto, não há apenas uma maneira humana de ser. A "aptidão para a cultura", sejam quais forem os demais sentidos da expressão, é uma capacidade de gerar diferença. Nesse processo criativo, que se realiza no curso ordinário da vida social, e através dele, é que a essência da condição de humanidade se revela como diversidade cultural. Para qualquer indivíduo apanhado no curso desse processo, "tornar-se humano" significa tornar-se diferente dos demais seres humanos que falam idiomas ou dialetos diferentes, praticam ofícios diferentes, têm crenças diferentes, e assim por diante. Se é nessa diferenciação de si mesmos dos demais seres que os humanos são distinguidos essencialmente dos animais, conclui-se então que a animalidade humana se revela na ausência dessa diferenciação, na uniformidade. Todos nós chegamos a este mundo como criaturas nascidas de um homem e uma mulher, um organismo biologicamente humano cuja constituição física é totalmente indiferente à instrução que receberemos mais tarde a respeito dos códigos de conduta de uma cultura ou outra. No que diz respeito a minha existência como membro da espécie humana, o fato de eu ser inglês, e não francês ou japonês, não é fundamental. Mas, do ponto de vista da expressão de minha humanidade, esse fato é vital: torna-me alguém, em vez de uma coisa. Ou seja, em um sentido mais geral, a cultura sublinha a identidade do ser humano não como organismo biológico, mas como sujeito moral. Quanto a esta última faculdade, consideramos todo homem ou mulher como pessoa. Minha condição de pessoa é, portanto, inseparável do pertencimento a uma cultura e ambos são ingredientes cruciais de minha existência humana. 

Temos agora condições de solucionar um paradoxo situado no cerne do pensamento ocidental, que afirma, com igual segurança, tanto que os seres humanos são animais quanto que a animalidade é o exato oposto da humanidade. Um ser humano é um indivíduo pertencente a uma espécie; existir como ser humano é existir como pessoa. No primeiro sentido, o conceito de humanidade refere-se a uma categoria biológica (Honro sapiens); no segundo, aponta para uma condição moral (de pessoa). O fato de que empregamos a mesma palavra "humano" para ambos os sentidos reflete a convicção profundamente arraigada de que todos os indivíduos pertencentes à espécie humana - e exclusivamente estes - podem ser pessoas, ou, dito de outra forma, que a condição de pessoa depende do pertencimento à categoria taxionômica. Como postula o Artigo Primeiro da Declaração Universal dos Direitos do Homem: "Todos os seres humanos são dotados de razão e consciência." Fica implícito, portanto, que os animais não-humanos não o são (Clark, 1988, p. 23). 

Aceitando esse princípio como artigo de fé, torna-se, então, impossível formular determinadas perguntas, pelo menos sem ferir os princípios da classificação genealógica geralmente adotada na definição das espécies biológicas. Não se pode perguntar, portanto, como faz Monboddo, como a razão e a fala foram adquiridas no decorrer da história das populações humanas, ou como essas faculdades podem ser encontradas de modo deficiente, ou não existirem, em determinados indivíduos de ascendência humana. Da mesma maneira, não se pode indagar se, ou até que ponto, animais de outras espécies poderiam ser dotados das faculdades da linguagem e do pensamento. No entanto, essas questões são legítimas, não podem ser respondidas de antemão, mas supõem uma investigação empírica. É perfeitamente razoável indagar, por exemplo, se os chimpanzés ou os golfinhos têm linguagem, ou se tomam deliberações racionais. Pode ser que se descubra que eles não o fazem, a não serem condições muito artificiais, e que essas aptidões realmente são exclusivas dos animais biologicamente humanos. Mas quem poderia afirmar que tais aptidões não venham a se desenvolver, em épocas futuras, entre espécies descendentes dos golfinhos ou dos chimpanzés de hoje? Se isso viesse a ocorrer, aí teríamos razões para considerar esses animais que falam e pensam como pessoas. Mas eles não poderiam ser encarados como membros da espécie humana, pois não teriam procedência humana. 

A adesão estrita à tese de que apenas os seres humanos podem ser pessoas nos deixaria, portanto, na absurda situação de ter de negar a possibilidade de uma evolução da qual nada sabemos hoje. Ao discutir a humanidade do orangotango, Monboddo, mais uma vez, estava errado pelas razões certas: errava porque os macacos antropóides não pertencem à espécie humana; estava certo porque, embora lhe faltasse vocabulário para expressar sua opinião de modo inequívoco, ele reconhecia que a classificação na categoria taxionômica conhecida como Homo sapiens não confere automaticamente qualidades de pessoa. Essa conclusão aponta imediatamente para um campo de investigação potencialmente inesgotável sobre a condição de pessoa dos animais não-humanos ou, se preferirmos, sobre a humanidade animal, em vez da animalidade humana. Ela sugere que a fronteira entre a espécie humana e as demais espécies do mundo animal não é paralela, mas que, na verdade, ela cruza as fronteiras entre humanidade e animalidade como estados do ser. Por isso mesmo, não se pode pretender que as abordagens do campo das humanidades sejam as únicas apropriadas à compreensão das questões referentes aos seres humanos, e que as vidas e os universos dos animais não-humanos sejam totalmente esgotados pelo paradigma da ciência natural (Ingold, 1989, p. 496). 

Uma conseqüência dessa pressuposição é que, enquanto as ações humanas são geralmente interpretadas como produtos de desígnio intencional, as ações dos outros animais - mesmo que ostensivamente semelhantes por sua natureza e conseqüências - costumam ser explicadas como resultado automático de um programa comportamental instalado (Ingold, 1988, p. 6). Certamente, quando se trata dos poucos animais com os quais mantemos relações estreitas e duradouras, tais como gatos e cães domésticos, logo descobrimos exceções, e lhes atribuímos intenções e propósitos, da mesma maneira que fazemos com os seres humanos. Em muitas culturas não-ocidentais, onde o envolvimento prático com outras espécies é muito maior do que o nosso, as exceções que costumamos fazer podem ser exatamente a regra. Entre os ojibwa, caçadores naturais do Canadá subártico, por exemplo, a condição de pessoa é tida como uma essência interna que engloba poderes de percepção e sensibilidade, volição, memória e fala, indiferente à forma particular que a espécie assume exteriormente. A forma humana não passa de um dos muitos disfarces por meio dos quais as pessoas se manifestam materialmente e qualquer um pode trocar sua forma pela de um animal, mais ou menos como quiser. Quando alguém encontra um animal, especialmente se ele exibir um comportamento fora do comum, fica imaginando quem ele é, porque pode ser uma pessoa conhecida. Assim, para os ojibwa, não existe nada de excepcionalmente "humano" em ser uma pessoa (Hallowell, 1960).

Meu objetivo ao apresentar esse exemplo é sublinhar que nossa definição convencional, de pessoa como uma prerrogativa dos seres humanos, é tão dependente da visão de mundo ocidental quanto a noção contrária, dos ojibwa, o é de sua cultura. Não há razão alguma para atribuir uma validade absoluta à primeira e não à segunda. O filósofo alemão Emanuel Kant, em 1790, resumiu da seguinte maneira a ortodoxia ocidental: "Como único ser dotado de discernimento na face da Terra, [o homem] certamente é o senhor da natureza e (...) nasceu para ser seu fim último" (vol. II, p. 431). Essa concepção imperialista do "lugar do homem na natureza", com sua negação dogmática de formas não-humanas de discernimento - sem qualquer demonstração empírica - fez um grande mal em sua época. Do ponto de vista pragmático, a crença dos ojibwa em um progresso harmonioso das relações de mútua interdependência entre animais e humanos contém uma profunda sabedoria ecológica e é muito louvável do ponto de vista da sobrevivência de nossa espécie, a longo prazo. De uma perspectiva científica, a pesquisa sobre a verdadeira natureza das semelhanças e diferenças entre nós e os outros animais permanece incipiente e não deveria ser cerceada por supostos apriorísticos acerca da preeminência dos humanos. Esse tipo de pesquisa, que os antropólogos tendem a considerar de certa maneira marginal a seus temas de maior interesse, tem, na realidade, uma importância crucial, pois atinge o cerne da concepção dominante sobre a singularidade humana. Tratamos desse tema a seguir. 


A questão da singularidade humana

Do ponto de vista biológico, a espécie humana é tão singular quanto todas as demais espécies existentes na face da Terra (Foley, 1987, p. 274). Essa singularidade, como afirmamos acima, não consiste de um ou mais atributos essenciais compartilhados por todos os membros da espécie e que nenhum indivíduo de qualquer outra espécie possui. Ao contrário, essa singularidade se encontra na composição atual do fundo comum de traços genéticos do qual todo indivíduo da espécie, em virtude de descendência, representa uma combinação particular. O pool genético de diferentes espécies pode sobrepor-se bastante, principalmente quando há proximidade filogenética - descobriu-se, por exemplo, que seres humanos e chimpanzés são cerca de 90% iguais -, mas nunca existe uma congruência exata. Além disso, a composição do pool genético da espécie muda com o tempo, o que significa dizer que passa por uma evolução. Esses fatos já são tidos como indiscutíveis no que se refere a espécies diferentes da nossa, mas quando se trata dos humanos há grande resistência em aceitá-los. Como observa um eminente filósofo da biologia, quase sem esconder sua irritação: "O desejo de encontrar alguma característica genética exclusiva de todos os seres humanos, e inexistente nos seres não-humanos, é irresistível. Mas, qualquer que seja o traço escolhido, ou algumas pessoas não o exibem ou então membros de outras espécies o possuem." (Hull, 1984, p. 35). Por que, então, prosseguir na busca? De onde provém a compulsão para descobrir esse atributo singular? 

Passemos em revista alguns dos atributos propostos como candidatos à exclusividade dos seres humanos. Todo cientista tem uma palavra ou expressão favorita com a qual preenche a lacuna na frase "o homem se define como um animal _________”, garantindo que essa palavra fornece a única chave para o entendimento da essência humana. Mas, se fizermos uma lista dessas palavras-chave, logo veremos que ela se torna muito comprida. Sem dúvida "o uso da linguagem" e "racional" encabeçam a lista. Dotados de linguagem, os seres humanos descrevem, especulam, argumentam, fazem piadas e se enganam. Eles podem mentir, conjurar coisas e eventos que jamais existiram e, dessa maneira, se mostram particularmente inquietos com as questões da verdade e da mentira. Ao raciocinar sobre o mundo e seus atos nesse inundo, os seres humanos também cometem erros; diz-se que o homem é um animal que erra. Além disso, ele tem consciência de si e se constrange com a opinião alheia, o que o torna também cônscio da passagem do tempo e da transitoriedade de sua própria vida. Procura, então, adaptar-se aos fatos do nascimento, do envelhecimento e da morte dentro de uma ordem atemporal: o homem é um animal religioso. Ele é também um formulador de projetos e impõe esquemas simbólicos por ele mesmo elaborados ao mundo dos objetos inanimados para a fabricação de ferramentas e artefatos, aos animais e às plantas para a produção (em vez de coleta) de alimentos e aos demais seres humanos para a construção de regras e instituições da vida social. 

Tudo isso pode ser realizado por seres de ambos os sexos e, embora seja convencionalmente aceito que a palavra "homem" inclui os integrantes masculinos e femininos da espécie humana, ao contrário do que acontece com outros animais, um preconceito estrutural da língua inglesa - entre outras - revela uma perniciosa tendência a atribuir aos machos todas as qualidades que pretensamente nos tornam humanos e a caracterizar a condição feminina seja pela ausência, seja pelo desenvolvimento relativamente mais fraco de tais atributos. Essa tendência se torna patente no mito de origem do "homem caçador", segundo o qual se atribui a uma atividade exclusivamente masculina - a busca de carne de caça - o estímulo seletivo para a emergência simultânea da fabricação de ferramentas, da linguagem e da inteligência racional, colocando-se, portanto, os machos na vanguarda da evolução humana (por exemplo, Laughlin, 1968). Não é minha intenção prosseguir na discussão desse tema aqui, mas apenas mencioná-lo a fim de alertar o leitor para as repercussões de uma antiga tese que afirma a superioridade dos homens sobre as mulheres como um reflexo natural da superioridade da condição humana sobre a animalidade.

Um tema que me interessa mais de perto é a objeção comumente levantada contra as tentativas de instaurar um Rubicão separando os humanos das demais espécies do reino animal, e que se baseia na afirmação de que as diferenças entre os seres são mais de grau do que de espécie. Os defensores dessa opinião, chamados de gradualistas, alegam que, embora a linguagem humana possa ser extremamente versátil, ela não difere fundamentalmente dos sistemas de comunicação usados por outros animais; sendo assim, é perfeitamente legítimo fazer referência à "linguagens dos animais". Na mesma linha de raciocínio, embora concordando em que os seres humanos têm uma inteligência superior, os gradualistas alertam contra a subestimação da inteligência dos outros animais - que, por sinal, tendem muito menos a come ter erros do que nós. Embora reconhecendo o alcance e a complexidade sem paralelos dos desígnios humanos, os gradualistas observam que as habilidades construtivas de animais não-humanos não podem ser negligenciadas. Insistir, contra todas as evidências, na existência de linguagem, inteligência e engenhosidade nos animais, afirmar que os seres humanos continuam sendo diferentes em espécie, dizem os gradualistas, é adotar uma atitude antropocêntrica insensata, que não deveria ter cabimento na pesquisa científica racional (Griffin, 1976). 

A acusação de antropocentrismo merece um exame cuidadoso. Nada há de antropocêntrico na afirmação da singularidade da espécie humana, pois, como já mencionei, toda espécie biológica é singular a seu modo. Mas será que a combinação dos vários atributos essenciais da condição humana que citei acima - linguagem, razão, autoconsciência e imaginação simbólica - nos permite descrever uma única espécie capaz de satisfazer os cânones da história natural? Certamente não. Pois aqueles atributos não oferecem informação alguma sobre os tipos de idiossincrasias morfológicas ou comportamentais que permitem aos naturalistas reconhecer indivíduos como pertencentes a uma ou outra espécie. A razão, por exemplo, não pode ser considerada um "traço distintivo" em igualdade de condições com o bipedalismo, o polegar oposto, a receptividade sexual durante o ano todo e a ausência de cauda. A bem dizer, a busca de atributos definidores da humanidade não tem sido motivada pelo interesse em descrever o que os seres humanos são, da mesma maneira como definimos, por exemplo, os elefantes ou os castores. Na realidade, essa busca decorre do desejo de definir o que se costuma chamar de condição humana. O bipedalismo, o polegar oposto e outros atributos são propriedades típicas exibidas pela grande maioria dos seres humanos, do mesmo modo que os elefantes têm trombas e os castores cavam diques. Razão e consciência, ao contrário, são qualidades essenciais à existência humana. A primeira baseia-se em dados da observação empírica, a segunda decorre inteiramente de um processo introspectivo. 

O antropocentrismo contestado pelos gradualistas é aquele que considera a "condição humana" como um estado de existência do tipo tudo-ou-nada, somente aberto aos membros da espécie humana e, por conseguinte, negado a todos os demais animais. Um antecedente dessa interpretação encontra-se na taxionomia de Lineu, estabelecida em Systema Naturae, de 1735, na qual o gênero Homo é situado dentro de uma classificação dos animais que se baseia em aspectos visíveis, como número de dedos das mãos e dos pés, mas especificada pela exigência de "Nosce te ipsum" "conheça por si mesmo" (Bendyshe, 1865, p. 422). Volte sua atenção para dentro de si, de sua alma, e não para fora, para a natureza, diz Lineu, aí você encontrará a essência dos seres humanos. Isso significa pensar a singularidade humana de uma forma nitidamente distinta da singularidade de outras espécies. E afirmar que os seres humanos não são diferentes dos elefantes da mesma maneira que os elefantes são diferentes dos castores, pois, enquanto a segunda diferença se produz no contexto da animalidade, a grande importância da primeira está em também colocar os humanos muito além da animalidade, de modo que a distinção entre elefantes (ou castores) e os seres humanos aparece apenas como uma instância particular da distinção geral entre animalidade e humanidade. 

Podemos agora entender por que, no mundo ocidental, pessoas inteligentes continuam recorrendo à existência de atributos essenciais da humanidade a fim de determinar a singularidade do Homo sapiens. A razão disso é a associação popular entre as noções de espécie humana e condição humana, a que nos referimos antes, e que, por seu turno, resulta de uma fusão ideológica do conceito de indivíduo biológico com o de sujeito moral, ou pessoa. Na medida em que os dois conceitos forem devidamente diferenciados, a espécie humana poderá ser definida em termos genealógicos, como qualquer outra espécie, sem necessidade de apelar para qualidades essenciais. A condição humana, por outro lado, pode ser descrita segundo essas qualidades, sem pré julgar a extensão em que seres humanos biológicos ou outros animais de fato dela participam. O grande interesse dos gradualistas está em avaliar essa extensão, afirmando que os seres humanos diferem dos outros animais em grau, e não em espécie. Em vez de conceberem a humanidade como um estado de tudo-ou-nada, eles a vêem como uma escala contínua que mede o desempenho real de populações animais e humanas. Não se trata de ter ou não ter linguagem, razão, consciência: de acordo com os gradualistas, os animais podem ser mais ou menos dotados dessas aptidões ou qualidades.

Os chimpanzés geralmente alcançam uma posição muito próxima dos seres humanos nessa escala. Uma quantidade extraordinária de esforço já foi investida em afagar os chimpanzés para convencê-los a dar provas de aptidão para discernir a solução de problemas, de possuírem um esboço de consciência e uma rudimentar competência no uso da linguagem. Os animais, até certo ponto, têm correspondido às expectativas, o que é suficiente para causar enorme surpresa e eventualmente consternação entre os observadores humanos e, ao mesmo tempo, induzir a uma boa dose de ceticismo quanto à validade dos resultados experimentais. Mas até o mais pródigo dos chimpanzés não chega aos pés dos humanos adultos. Em comparação conosco, não surpreende que os chimpanzés não se saiam muito bem como humanos, mas a semelhança é tão grande que tendemos a encará-los da mesma maneira que Monboddo viu os orangotangos: como seres humanos incompletos, e não como macacos completos. Vemos uma criança humana em cada chimpanzé maduro e por isso o tratamos como se 
fosse um caso de desenvolvimento interrompido.

Muitos antropólogos desconfiam, com razão, dessa avaliação (Tapper, 1988, pp. 579). Em primeiro lugar, observam que há não muito tempo os seres humanos "primitivos" eram vistos da mesma maneira, como seres cujo aspecto de humanidade ainda estava pouco desenvolvido: linguagem relativamente pobre, inteligência pré-racional e capacidade de autodomínio muito limitada. Em segundo lugar, esses antropólogos assinalam que aqueles de "nós" que comparam os outros animais "conosco" não representam o conjunto da humanidade, mas sim um pequeno e historicamente atípico segmento da sociedade, isto é, a classe média urbana do que denominamos "sociedade ocidental moderna". Desde a época em que Thomas Huxley (1894) popularizou a noção de superioridade do europeu moderno sobre o selvagem como equivalente à superioridade deste sobre o macaco, supondo-se, portanto, inexistente uma descontinuidade na passagem do animal para o homem, a tese gradualista tem se revelado carregada de um forte desvio etnocêntrico, em outras palavras, eivada do pressuposto de que os únicos padrões verdadeiros e universalmente aplicáveis são aqueles adequados a nossa própria sociedade. Em algum ponto remoto da escala de gradações que culminou no "homem civilizado moderno" - superiormente inteligente, cientificamente esclarecido, conscientemente liberado e, obviamente, macho - se supunha que os melhores macacos disputavam com os povos mais primitivos uma posição de precedência. Ainda hoje, em nossos sonhos de encontrar vida inteligente em outros planetas, supõe-se que os padrões de progresso dos extraterrestres sejam iguais aos nossos, mesmo que eles tenham nos superado, a ponto de nos fazer parecer primitivos em comparação com eles.

 

 
Etnocentrismo e antropocentrismo do ponto de vista das diferenças animal-homem. O diagrama 4a esquerda ilustra a tese gradualista: uma única escala de progresso absoluto leva dos macacos aos homens "primitivos" e destes à civilização moderna. O da direita mostra a tese oposta, do relativismo cultural: formas culturais diversas, nenhuma das quais pode ser considerada mais avançada do que a outra, são superpostas a um substrato universal de animalidade.

Atentos às evidências da diversidade cultural, os antropólogos insistem em que há tantos padrões de humanidade quanto diferentes maneiras humanas de existir e que não há fundamento algum - senão o puro preconceito - para atribuir autoridade universal a qualquer conjunto de padrões. Contudo, os antropólogos sustentam que essa mesma diversidade é manifestação de uma essência humana, a aptidão para a cultura, que separa radicalmente os homens dos animais. O relativismo cultural dos antropólogos, sua concepção de que só é possível compreender a conduta de qualquer grupo de seres humanos relacionando-a aos padrões próprios da cultura específica a que pertence esse grupo, parece basear-se exatamente no mesmo tipo de concepção antropocêntrica da singularidade humana contestada pelos gradualistas. 

A gravidade do dilema implícito nesse raciocínio está em que parece ser impossível derrotar o etnocentrismo sem cair no antropocentrismo e vice-versa. Reivindicando a existência de diferenças de grau, o gradualismo não pode deixar de postular uma escala universal de progresso, em relação à qual os homens e os outros animais são situados em posições de "mais" ou "menos". Se, no entanto, recusamos essa escala por conta do etnocentrismo implícito em seu critério de progresso, ficamos com uma concepção antropocêntrica da humanidade como uma condição de tudo-ou-nada, que não admite nenhuma variação de grau, mas é irrestritamente variável em seus modos de expressão. Esse dilema, esquematizado no Gráfico (página anterior), encontra-se na base de boa parte do debate atual entre os biólogos evolucionistas, que dão ênfase à continuidade entre os humanos e outros animais e relutam em aceitar diferenças de espécie, e os antropólogos, que permanecem apegados a uma visão dualista da humanidade: em parte natureza, em parte cultura. 

Acredito que nosso problema principal seja resolver esse dilema, reconciliar a continuidade do processo evolutivo com a consciência de vivermos uma vida que se coloca além do "meramente animal". Isso não pode ser realizado pela redução do estudo da humanidade seja a uma pesquisa da natureza e evolução da espécie Homo sapiens, seja a uma investigação da condição humana conforme manifestada na cultura e na História. Nossa meta deveria ser transcender a oposição entre essas concepções que têm se mantido tradicionalmente como territórios exclusivos da ciência natural e das humanidades. Em outras palavras, precisamos estudar a relação entre a espécie e a condição, entre seres humanos e ser humano. Neste artigo demonstrei não só que essa relação não é simples, quanto que temos sido impedidos de formular as questões relevantes devido ao pressuposto de que as duas noções de humanidade são essencialmente equivalentes, que a condição define a espécie. Para pesquisar uma relação deve-se começar distinguindo os termos que ela vincula. Nossa ciência da humanidade deve, por conseguinte, ser reformulada com mais precisão, como uma ciência da relação entre duas humanidades, entre uma espécie biológica peculiar e suas condições sociais e culturais de existência. 


Tradução de Vera Pereira

Os clássicos da política-HOBBES: o medo e a esperança

HOBBES: o medo e a esperança

(Do livro: Os clássicos da política, vol. I, org. Francisco C. Weffort, Ed. Ática, 1989, 54-77)

O mais difícil de se entender no pensamento de Thomas Hobbes - melhor dizendo, a chave para entender o seu pensamento - é o que ele diz do estado de natureza. Sabemos que Hobbes é um contratualista, quer dizer, um daqueles filósofos que, entre o século XVI e o XVIII (basicamente), afirmaram que a origem do Estado e/ou da sociedade está num contrato: os homens viveriam, naturalmente, sem poder e sem organização - que somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles, estabelecendo as regras de convívio social e de subordinação política.

No século XIX e mesmo no XX, quando se firmaram as concepções modernas da história e da ciência social, os contratualistas foram muito contestados.

Ao iniciar uma interpretação sociológica do direito, na metade do século XIX, Sir Henry Maine - por exemplo - criticou-os asperamente: seria impossível (dizia) selvagens que nunca tiveram contato social dominarem a tal ponto a linguagem, conhecerem uma noção jurídica tão abstrata quanto a de contrato, para que pudessem se reunir nas clareiras das florestas e fazerem um pacto social. Na verdade (continuava), o contrato só é possível quando há noções que nascem de uma longa experiência da vida em sociedade.

A guerra se generaliza - Começamos por essa crítica porque espontaneamente, quando um homem do século XX lê os contratualistas, ele sente a mesma estranheza que Maine. E por isso é preciso ver que erro Maine cometeu. Raro, ou nenhum, contratualista pensou que selvagens isolados se juntam numa clareira para fazer um simulacro de constituinte. Voltaremos a isso depois (ao ver o que é ciência política para Hobbes). Por ora, só isso: o homem natural de Hobbes não é um selvagem. É o mesmo homem que vive em sociedade. Melhor dizendo, a natureza do homem não muda conforme o tempo, ou a história, ou a vida social. Para Hobbes, como para a maior parte dos autores de antes do século XVIII, não existe a história entendida como transformando os homens. Estes não mudam. É por isso que Hobbes, e outros, citam os gregos e romanos quando querem conhecer ou exemplificar algo sobre o homem, mesmo e seu tempo.

Como o homem é, naturalmente?

"A natureza fez os homens tão iguais, quanto ás faculdades do corpo e do espírito, que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.

Quanto ás faculdades do espírito (pondo de lado as artes que dependem das palavras, e especialmente aquela capacidade para proceder de acordo com regras gerais e infalíveis a que se chama ciência; a qual muitos poucos têm, e apenas numas poucas coisas, pois não é uma faculdade nativa, nascida conosco, e não pode ser conseguida - como a prudência - ao mesmo tempo que se está procurando alguma outra coisa), encontro entre os homens uma igualdade ainda maior do que a igualdade de força.

Porque a prudência nada mais é do que experiência, que um tempo igual igualmente oferece a todos os homens, naquelas coisas a que igualmente se dedicam. O que talvez possa tornar inaceitável essa igualdade é simplesmente a concepção vaidosa da própria sabedoria, a qual quase todos os homens supõe possuir em maior grau do que o vulto; quer dizer, em maior grau do que todos menos eles próprios, e alguns outros que, ou devido à fama ou devido a concordarem com eles, merecem sua aprovação.

Pois a natureza dos homens é tal que, embora sejam capazes de reconhecer em muitos outros maior inteligência, maior eloquência ou maior saber, dificilmente acreditam que haja muitos tão sábios como eles próprios; porque vêem sua própria sabedoria bem de perto, e a dos outros homens à distância. mas isto prova que os homens são iguais quanto a esse ponto, e não que sejam desiguais. Pois geralmente não há sinal mais claro de uma distribuição eqüitativa de alguma coisa do que o fato de todos estarem contentes com a parte que lhes coube. (Leviatã, cap. XIII, p. 74)

Nesse texto célebre - e o que causou maior irritação contra Hobbes - ele não afirma que os homens são absolutamente iguais, mas que são "tão iguais que...": iguais o bastante para que nenhum possa triunfar de maneira total sobre outro. Todo homem é opaco aos olhos de seu semelhante - eu não sei o que o outro deseja, e por isso tenho que fazer uma suposição de qual será a sua atitude mais prudente, mais razoável. Como ele também não sabe o que quero, também é forçado a supor o que farei. Dessa suposições recíprocas, decorre que geralmente o mais razoável para cada um é atacar o outro, ou para vencê-lo, ou simplesmente para evita rum ataque possível: assim a guerra se generaliza entre os homens. Por isso, se não há um Estado controlando e reprimindo, fazer a guerra contra os outros é a atitude mais racional que eu posso adotar (é preciso enfatizar esse ponto, para ninguém pensar que o "homem lobo do homem", em guerra contra todos, é um anormal; suas ações e cálculos são os únicos racionais, no estado de natureza.)

"(Da) igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto á esperança de atingirmos nossos fins. Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro.

E disto se segue que, quando um invasor nada mais tem a recear do que o poder de um único outro homem, se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para desapossá-lo e privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho, mas também de sua vida e de sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos outros.

E contra esta desconfiança de uns em relação aos outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação; isto é, pela força ou pela astúcia, subjugar as pessoas de todos os homens que puder, durante o tempo necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande para ameaçá-lo. E isto não é mais do que sua própria conservação exige, conforme é geralmente admitido.

Também por causa de alguns que, comprazendo-se em contemplar seu próprio poder nos atos de conquista, levam estes atos mais longe do que sua segurança exige, se outros que, do contrário, se contentariam em manter-se tranqüilamente dentro de modestos limites, não aumentarem seu poder por meio de invasões, eles serão incapazes de subsistir durante muito tempo, se se limitarem apenas a uma atitude de defesa. Consequentemente esse aumento do domínio sobre os homens, sendo necessário para a conservação de cada um, deve ser por todos admitido.

Por outro lado, os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito. Porque cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio e, na presença de todos os sinais de desprezo ou de subestimação, naturalmente se esforça, na medida em que a tal se atreva (o que, entre os que não têm um poder comum capaz de os submeter a todos, vai suficientemente longe para levá-los a destruir-se uns aos outros), por arrancar de seus contendores a atribuição de maior valor, causando-lhes dano, e dos outros também, através do exemplo.

De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição, segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória.

A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos, para defendê-los; e os terceiros por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome.

Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida.

Portanto a noção de tempo deve ser levada em conta quanto á natureza da guerra, do mesmo modo que quanto à natureza do clima. Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz. (Ibidem, cap. XIII, p. 74-6).

Hobbes tem perfeita consciência de que essa definição há de chocar seus leitores, que se prendem à definição aristotélica do homem como zoon politikon, animal social. Para Aristóteles, o homem naturalmente vive em sociedade, e só desenvolve todas as suas potencialidades dentro do Estado. Esta é a convicção da maioria das pessoas, que preferem fechar os olhos à tensão que há na convivência com os demais homens, e conceber a relação social como harmônica. Por isso Hobbes acrescenta um apelo á experiência pessoal:

"Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruir-se uns aos outros. E poderá portanto talvez desejar, não confiando nesta inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela experiência. Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado; que quando vai dormir fecha suas portas; que mesmo quando está em casa tranca seus cofres; e isto mesmo sabendo que existem leis e funcionários públicos armados, prontos a vingar qualquer injúria que lhe possa ser feita.

Que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar armado; de seus concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus filhos e servidores, quando tranca seus cofres? Não significa isso acusar tanto a humanidade com seus atos como eu o faço com minhas palavras? Mas nenhum de nós acusa com isso a natureza humana. Os desejos e outras paixões do homem não são em si mesmos um pecado. Nem tampouco o são as ações que derivam dessa paixões, até ao momento em que se tome conhecimento de uma lei que as proíba; o que será impossível até ao momento em que sejam feitas as leis; e nenhuma lei pode ser feita antes de se ter determinado qual a pessoa que deverá fazê-la" (Ibidem, cap. XIII, p. 76)

O que Hobbes pede é um exame de consciência: "conhece-te a ti mesmo". Estamos carregados de preconceitos, acha Hobbes, que vêm basicamente de Aristóteles e da filosofia escolástica medieval. Mas o mito de que o homem é sociável por natureza nos impede de identificar onde está o conflito, e de contê-lo. A política só será uma ciência se soubermos como o homem é de fato, e não na ilusão; e só com a ciência política será possível construirmos Estados que se sustentem, em vez de tornarem permanente a guerra civil.

"[...] há um ditado que ultimamente tem sido muito usado; que a sabedoria não se adquire pela leitura dos livros, mas do homem. Em conseqüência do que aquelas pessoas, que regra geral são incapazes de apresentar outras provas de sua sabedoria, comprazem-se em mostrar o que pensam ter lido nos homens, através de impiedosas censuras que fazem umas às outras, por trás das costas. Mas há um outro ditado que ultimamente não tem sido compreendido, graças ao qual os homens poderiam realmente aprender a ler-se uns aos outros, se se dessem ao trabalho de fazê-lo: isto é, Nosce te ipsum, "Lê-te a ti mesmo".

O que não pretendia ter sentido, atualmente habitual, de pôr cobro à bárbara conduta dos detentores do poder para com seus inferiores ou de levar homens de baixa estirpe a um comportamento insolente para com seus superiores. Pretendia ensinar-nos que, a partir da semelhança entre os pensamentos e paixões dos diferentes homens, quem quer que olhe para dentro de si mesmo, e examine o que faz quando pensa, opina, raciocina, espera, receia etc., e por que motivos o faz, poderá por esse meio ler e conhecer quais são os pensamentos e paixões de todos os outros homens, em circunstâncias idênticas. Refiro-me á semelhança das paixões, que são as mesmas em todos os homens, desejo, medo, esperança etc., e não à semelhança dos objetos das paixões, que são as coisas desejadas, temidas, esperadas etc.

Quanto a estas últimas, a constituição individual e a educação de cada um são tão variáveis, e são tão fáceis de ocultar a nosso conhecimento, que os caracteres do coração humano, emaranhados e confusos como são, devido à dissimulação, à mentira, ao fingimento e às doutrinas errôneas, só se tornam legíveis para quem investiga os corações. E, embora por vezes descubramos os desígnios dos homens através de suas ações, tentar fazê-lo sem compará-las com as nossas, distinguindo todas as circunstâncias capazes de alterar o caso, é o mesmo que decifrar sem ter uma chave, e deixar-se o mais das vezes enganar, quer por excesso de confiança ou por excesso de desconfiança, conforme aquele que lê seja um bom ou um mau homem.

Mas mesmo que um homem seja capaz de ler perfeitamente um outro através de suas ações, isso servir-lhe-á apenas com seus conhecidos, que são muito poucos. Aquele que vai governar uma nação inteira deve ler, em si mesmo, não este ou aquele indivíduo em particular, mas o gênero humano. O que é coisa difícil, mais ainda do que aprender qualquer língua ou qualquer ciência, mas ainda assim, depois de eu ter exposto claramente e de maneira ordenada minha própria leitura, o trabalho que a outros caberá será apenas verificar se não encontram o mesmo em si próprios. Pois esta espécie de doutrina não admite outra demonstração. (Introdução, Ibidem, p. 6)

Dessa perspectiva algo cética, sem ilusões, Hobbes deduz que no estado de natureza todo homem tem direito a tudo:

"O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, de maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim. (Ibidem, cap. XIV, p. 78)

Como pôr termo a esse conflito - Para Hobbes, o homem é o indivíduo. Mas atenção, antes de falarmos em individualismo burguês. O indivíduo hobbesiano não almeja tanto os bens (como erradamente pensa o comentador Macpherson), mas a honra. Entre as causas da violência, uma das principais reside na busca da glória, quando os homens se batem "por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome" (Ibidem, cap. XIII, p. 75). A honra é o valor atribuído a alguém em função das aparências externas.

O homem hobbesiano não é então um homo oeconomicus, porque seu maior interesse não está em produzir riquezas, nem mesmo em pilhá-las. O mais importante para ele é ter os sinais de honra, entre os quais se inclui a própria riqueza (mais como meio, do que como fim em si). Quer dizer que o homem vive basicamente de imaginação. Ele imagina ter um poder, imagina ser respeitado - ou ofendido - pelos semelhantes, imagina o que o outro vai fazer. Da imaginação - e neste ponto Hobbes concorda com muitos pensadores do século XVII e XVIII - decorrem perigos, porque o homem se põe a fantasiar o que é irreal. O estado de natureza é uma condição de guerra, porque cada um se imagina (com razão ou sem) poderoso, perseguido, traído.

Como pôr termo a esse conflito? Há uma base jurídica para isso; depois do direito de natureza, que já vimos, Hobbes define o que é a lei de natureza:

"Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la. Porque embora os que têm tratado deste assunto costumem confundir jus e lex, o direito e a lei, é necessário distingui-los um do outro. Pois o direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas. De modo que a lei e o direito se distinguem tanto como a obrigação e a liberdade, as quais são incompatíveis quando se referem à mesma matéria.

E dado que a condição do homem (conforme foi declarado no capítulo anterior) é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por sua própria razão, e não havendo nada, de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa tal condição todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros.

Portanto, enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as coisas, não poderá haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a segurança de viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver. Consequentemente é um preceito ou regra geral da razão, Que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. A primeira parte desta regra encerra a lei primeira e fundamental de natureza, isto é, procurar a paz, e segui-la. A segunda encerra a suma do direito de natureza, isto é, por todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos.

Desta lei fundamental de natureza, mediante a qual se ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei: Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo.

Porque enquanto cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira todos os homens se encontrarão numa condição de guerra. Mas se os outros homens não renunciarem a seu direito, assim como ele próprio, nesse caso não há razão para que alguém se prive do seu, pois isso eqüivaleria a oferecer-se como presa (coisa a que ninguém é obrigado), e não a dispor-se para a paz. É esta a lei do Evangelho: Faz aos outros o que queres que te façam a ti. E esta é a lei de todos os homens: Quod tibi fieri non vis, alteri ne feceris.

 

Renunciar ao direito a alguma coisa é o mesmo que privar-se da liberdade de negar ao outro o benefício de seu próprio direito à mesma coisa. Pois quem abandona ou renuncia a seu direito não dá a qualquer outro homem um direito que este já não tivesse antes, porque não há nada a que um homem não tenha direito por natureza; mas apenas se afasta do caminho do outro, para que ele possa gozar de seu direito original, sem que haja obstáculos da sua parte, mas não sem que haja obstáculos da parte dos outros. De modo que a conseqüência que redunda para um homem da desistência de outro a seu direito é simplesmente uma diminuição equivalente dos impedimentos ao uso de seu próprio direito original. (Ibidem cap. XIV, p. 78-9)

Mas não basta o fundamento jurídico. É preciso que exista um Estado dotado da espada, armado, para forçar os homens ao respeito. Desta maneira, aliás, a imaginação será regulada melhor, porque cada um receberá o que o soberano determinar.

"Porque as leis de natureza (como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém.

Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros. Em todos os lugares onde os homens viviam em pequenas famílias, roubar-se e espoliar-se uns aos outros sempre foi uma ocupação legítima, e tão longe de ser considerada contrária à lei de natureza que quanto maior era a espoliação conseguida maior era a honra adquirida". (Ibidem, cap. XVII, p. 103)

Mas o poder de Estado tem que ser pleno. O Estado medieval não conhecia poder absoluto, nem soberania - os poderes do rei eram contrabalançados pelos da nobreza, das cidades, dos Parlamentos. Jean Bodin, no século XVI, é o primeiro teórico a afirmar que no Estado deve haver um poder soberano, isto é, um foco de autoridade que possa resolver todas as pendências e arbitrar qualquer decisão.

Hobbes desenvolve essa idéia, e monta um Estado que é condição para existir a própria sociedade. A sociedade nasce com o Estado.

"A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade.

O que eqüivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito á paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões à sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações.

Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros.

É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum.

Aquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos." (Ibidem, cap. XVII, p. 105-6)

Na tradição contratualista, ás vezes se distingue o contrato de associação (pela qual se forma a sociedade) do contrato de submissão ( que institui um poder político, um governo, e é firmado entre "a sociedade" e "o príncipe"). A novidade de Hobbes está em fundir os dois num só. Não existe primeiro a sociedade, e depois o poder ("o Estado"). (veja John Locke).

Porque, se há governo, é justamente para que os homens possam conviver em paz: sem governo, já vimos, nós nos matamos uns aos outros.

Por isso, o poder do governante tem que ser ilimitado. Pois, se ele sofrer alguma limitação, se o governante tiver de respeitar tal ou qual obrigação (por exemplo, tiver que ser justo) - então quem irá julgar se ele está sendo ou não justo? Quem julgar terá também o poder de julgar se o príncipe continua príncipe ou não - e portanto será, ele que julga, a autoridade suprema. Não há alternativa: ou o poder é absoluto, ou continuamos na condição de guerra, entre poderes que se enfrentam.

Para montar o poder absoluto, Hobbes concebe um contrato diferente, sui generis. Observemos que o soberano não assina o contrato - este é firmado apenas pelos que vão se tornar súditos, não pelo beneficiário. Por uma razão simples: no momento do contrato não existe ainda soberano, que só surge devido ao contrato. Disso resulta que ele se conserva fora dos compromissos, e isento de qualquer obrigação.

"Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens.

É desta instituição do Estado que derivam todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido.

Em primeiro lugar, na medida em que pactuam, deve entender-se que não se encontram obrigados por um pacto anterior a qualquer coisa que contradiga o atual. Consequentemente, aqueles que já instituíram um Estado, dado que são obrigados pelo pacto a reconhecer como seus os atos e decisões de alguém, não podem legitimamente celebrar entre si um novo pacto no sentido de obedecer a outrem, seja no que for, sem sua licença.

Portanto, aqueles que estão submetidos a um monarca não podem sem licença deste renunciar à monarquia, voltando á confusão de uma multidão desunida, nem transferir sua pessoa daquele que dela é portador para outro homem, ou outra assembléia de homens. Pois são obrigados, cada homem perante cada homem, a reconhecer e a ser considerados autores de tudo quanto aquele que já é seu soberano fizer e considerar bom fazer. Assim, a dissensão de alguém levaria todos os restantes a romper o pacto feito com esse alguém, o que constitui injustiça.

Por outro lado, cada homem conferiu a soberania àquele que é portador de sua pessoa, portanto se o depuserem estarão tirando-lhe o que é seu, o que também constitui injustiça. Além do mais, se aquele que tentar depor seu soberano for morto, ou por ele castigado devido a essa tentativa, será o autor de seu próprio castigo, dado que por instituição é autor de tudo quanto seu soberano fizer. E, dado que constitui injustiça alguém fazer coisa devido à qual possa ser castigado por sua própria autoridade, também a esse título ele estará sendo injusto.

E quando alguns homens, desobedecendo a seu soberano, pretendem ter celebrado um novo pacto, não com homens, mas com Deus, também isto é injusto, pois não há pacto com Deus a não ser através da mediação de alguém que represente a pessoa de Deus, e ninguém o faz a não ser o lugar-tenente de Deus, o detentor da soberania abaixo de Deus. E esta pretensão de um pacto com Deus é uma mentira tão evidente, mesmo perante a própria consciência de quem tal pretende, que não constitui apenas um ato injusto, mas também um ato próprio de um caráter vil e inumano.

Em segundo lugar, dado que o direito de representar a pessoa de todos é conferido ao que é tornado soberano mediante um pacto celebrado apenas entre cada um e cada um, e não entre o soberano e cada um dos outros, não pode haver quebra do pacto a parte do soberano, portanto nenhum dos súditos pode libertar-se da sujeição, sob qualquer pretexto de infração.

É evidente que quem é tornado soberano não faz antecipadamente qualquer pacto com seus súditos, porque teria ou que celebrá-lo com toda a multidão, na qualidade de parte do pacto, ou que celebrar diversos pactos, um com cada um deles. Com o todo, na qualidade de parte, é impossível, porque nesse momento eles ainda não constituem uma pessoa. E se fizer tantos pactos quantos forem os homens, depois de ele receber a soberania esses pactos serão nulos, pois qualquer ato que possa ser apresentado por um deles como rompimento do pacto será um ato praticado na pessoa e pelo direito de cada um deles em particular.

Além disso, se algum ou mais de um deles pretender que houve infração do pacto feito pelo soberano quando de sua instituição, e outros ou um só de seus súditos, ou mesmo apenas ele próprio, pretender que não houve tal infração, não haverá nesse caso qualquer juiz capaz de decidir a controvérsia. Volta portanto a ser a força a decidir, e cada um recupera o direito de se defender por seus próprios meios, contrariamente à intenção que o levara àquela instituição. Portanto é inútil pretender conferir a soberania através de um pacto anterior.

A opinião segundo a qual o monarca recebe de um pacto seu poder, quer dizer, sob certas condições, deriva de não se compreender esta simples verdade: que os pactos, não passando de palavras e vento, não têm qualquer força para obrigar, dominar, constranger ou proteger ninguém, a não ser o que deriva da espada pública. Ou seja, das mãos livres e sem peias daquele homem, ou assembléia de homens, que detém a soberania, cujas ações são garantidas por todos, e realizadas pela força de todos os que nele se encontram unidos. Quando se confere a soberania a uma assembléia de homens, ninguém deve imaginar que um tal pacto faça parte da instituição.

Pois ninguém é suficientemente tolo para dizer, por exemplo, que o povo de Roma fez um pacto com os romanos para deter a soberania sob tais e tais condições, as quais, quando não cumpridas, dariam aos romanos o direito de depor o povo de Roma. O fato de os homens não verem a razão para que se passe o mesmo numa monarquia e num governo popular deriva da ambição de alguns, que vêem com mais simpatia o governo de uma assembléia, da qual podem ter a esperança de vir a participar, do que o de uma monarquia, da qual é impossível esperarem desfrutar.

Em terceiro lugar, se a maioria, por voto de consentimento, escolher um soberano, os que tiverem discordado devem passar a consentir juntamente com os restantes. Ou seja, devem aceitar reconhecer todos os atos que ele venha a praticar, ou então serem justamente destruídos pelos restantes. Aquele que voluntariamente ingressou na congregação dos que constituíam a assembléia, declarou suficientemente com esse ato sua vontade (e portanto tacitamente fez um pacto) de se conformar ao que a maioria decidir.

Portanto, se depois recusar aceitá-la, ou protestar contra qualquer de seus decretos, age contrariamente ao pacto, isto é, age injustamente. E quer faça parte da congregação, quer não faça, e que seu consentimento seja pedido, quer não seja, ou terá que submeter-se a seus decretos ou será deixado na condição de guerra em que antes se encontrava, e na qual pode, sem injustiça, ser destruído por qualquer um..

Em quarto lugar, dado que todo súdito é por instituição autor de todos os atos e decisões do soberano instituído, segue-se que nada do que este faça pode ser considerado injúria para com qualquer de seus súditos, e que nenhum deles pode acusá-lo de injustiça. Pois quem faz alguma coisa em virtude da autoridade de um outro não pode nunca causar injúria àquele em virtude de cuja autoridade está agindo.

Por esta instituição de um Estado, cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano fizer, por conseqüência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu soberano estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não deve acusar ninguém a não ser a si próprio; e não pode acusar-se a si próprio de injúria, pois causar injúria a si próprio é impossível. É certo que os detentores do poder soberano podem cometer iniquidades, mas não podem cometer injustiça nem injúria em sentido próprio.

Em quinto lugar, e em conseqüência do que foi dito por último, aquele que detém o poder soberano não pode justamente ser morto, nem de qualquer outra maneira pode ser punido por seus súditos. Dado que cada súdito é autor dos atos de seu soberano, cada um estaria castigando outrem pelos atos cometidos por si mesmo". (Ibidem, cap. XVIII, p. 107-9)

Igualdade e liberdade - Nesse Estado, em que o poder é absoluto - perguntará o leitor - que papel caberão à liberdade e á igualdade, estes grandes valores que aprendemos a respeitar? Ora, o que Hobbes faz é justamente desmontar o valor retórico que atribuímos a palavras capazes de gerar tanto entusiasmo - e, dirá ele, tanta ambição, descontentamento e guerra. A igualdade, já vimos, é o fator que leva à guerra de todos, dizendo que os homens são iguais, Hobbes não faz uma proclamação revolucionária contra o Antigo Regime (como fará a Revolução Francesa: "Todos os homens nascem livres e iguais..."), simplesmente afirma que dois ou mais homens podem querer a mesma coisa, e por isso todos vivemos em tensa competição. E a liberdade? Hobbes vai defini-la de modo que também deixa de ser um valor.

"Liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo por oposição os impedimentos externos do movimento); e não se aplica menos ás criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais. Porque de tudo o que estiver amarrado ou envolvido de modo a não poder mover-se senão dentro de um certo espaço, sendo esse espaço determinado pela oposição de algum corpo externo, dizemos que não tem liberdade de ir mais além.

E o mesmo se passa com todas as criaturas vivas, quando se encontram presas ou limitadas por paredes ou cadeiras; e também das águas, quando são contidas por diques ou canais, e se assim não fosse se espalhariam por um espaço maior, costumamos dizer que não têm a liberdade de se mover da maneira que fariam se não fossem esses impedimentos externos. Mas quando o que impede o movimento faz parte da constituição da própria coisa não costumamos dizer que ela não tem liberdade, mas que lhe falta o poder de se mover; como quando uma pedra está parada, ou um homem se encontra amarrado ao leito pela doença.

Conformemente a este significado próprio e geralmente aceito da palavra, um homem livre é aquele que, naquelas coisas que graças a sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer". (Ibidem, cap. XXI, p. 130)

Este capítulo, o XXI, é um dos mais importantes e menos lidos do Leviatã. Hobbes começa reduzindo a liberdade a uma determinação física, aplicável a qualquer corpo. Com isso ele praticamente elimina o valor (a seu ver retórico) da liberdade como um clamor popular, como um princípio pelo qual homens lutam e morrem.

"[....] é coisa fácil os homens se deixarem iludir pelo especioso nome de liberdade e, por falta de capacidade de distinguir, tomarem por herança pessoal e direito inato seu aquilo que é apenas direito do Estado. E quando o mesmo erro é confirmado pela autoridade de autores reputados por seus escritos sobre o assunto, não é de admirar que ele provoque sedições e mudanças de governo. Nestas partes ocidentais do mundo, costumamos receber nossas opiniões relativas à instituição e aos direitos do Estado, de Aristóteles, Cícero e outros autores, gregos e romanos, que viviam em Estados populares, e em vez de fazerem derivar esses direitos dos princípios da natureza os transcreviam para seus livros a partir da prática de seus próprios Estados, que eram populares.

Tal como os gramáticos descrevem as regras da linguagem a partir da prática do tempo, ou as regras da poesia a partir dos poemas de Homero e Virgílio. E como aos atenienses se ensinava (para neles impedir o desejo de mudar de governo) que eram homens livres, e que todos os que viviam em monarquia eram escravos, Aristóteles escreveu em sua Política (livro 6, cap. 2): Na democracia deve supor-se a liberdade; porque é geralmente reconhecido que ninguém é livre em qualquer outra forma de governo.

Tal como Aristóteles, também Cícero e outros autores baseavam sua doutrina civil nas opiniões dos romanos, que eram ensinados a odiar a monarquia, primeiro por aqueles que depuseram o soberano e passaram a partilhar entre si a soberania de Roma, e depois por seus sucessores. Através da leitura desses autores gregos e latinos, os homens passaram desde a infância a adquirir o hábito (sob uma falsa aparência de liberdade) de fomentar tumultos e de exercer um licencioso controle sobre os atos de seus soberanos. E por sua vez o de controlar esses controladores, com uma imensa efusão de sangue. E creio que em verdade posso afirmar que jamais uma coisa foi paga tão caro como estas partes ocidentais pagaram o aprendizado das línguas grega e latina. (Ibidem, cap. XXI, p. 132)"

Resta, porém, uma liberdade ao homem. Quando o indivíduo firmou o contrato social, renunciou ao seu direito de natureza, isto é, ao fundamento jurídico da guerra de todos. É que, neste direito, o meio (fazer o que julgasse mais conveniente) contradizia o fim (preservar a própria vida). O homem percebeu que, como todos tinham esse direito tanto quanto ele, o resultado só podia ser a guerra - "e a vida do homem [era] solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta". (Ibidem, cap. XIII, p. 76).

Mas, dando poderes ao soberano, a fim de instaurar a paz, o homem só abriu mão de seu direito para proteger a sua própria vida. Se esse fim não for atendido pelo soberano, o súdito não lhe deve mais obediência - não porque o soberano violou algum compromisso (isso é impossível, pois o soberano não prometeu nada), mas simplesmente porque desapareceu a razão que levava o súdito a obedecer. Esta é a "verdadeira liberdade do súdito".

"Passando agora concretamente à verdadeira liberdade dos súditos, ou seja, quais são as coisas que, embora ordenadas pelo soberano, não obstante eles podem sem injustiça recusar-se a fazer, é preciso examinar quais são os direitos que transferimos no momento em que criamos um Estado. Ou então, o que é a mesma coisa, qual a liberdade que a nós mesmos negamos, ao reconhecer todas as ações (sem exceção) do homem ou assembléia de quem fazemos nosso soberano.

Porque de nosso ato de submissão fazem parte tanto nossa obrigação quanto nossa liberdade, as quais portanto devem ser inferidas por argumentos daí tirados, pois ninguém tem qualquer obrigação que não derive de algum de seus próprios atos, visto que todos os homens são, por natureza, igualmente livres. Dado que tais argumentos terão que ser tirados ou das palavras expressas, eu autorizo todas as suas ações, ou da intenção daquele que se submete a seu poder (intenção que deve ser entendida como o fim devido ao qual assim se submeteu), a obrigação e a liberdade do súdito deve ser derivada, ou daquelas palavras (ou outras equivalentes), ou do fim da instituição da soberania, a saber: a paz dos súditos ente si, e sua defesa contra um inimigo comum.

Portanto, em primeiro lugar, dado que a soberania por instituição assenta num pacto entre cada um e todos os outros, e a soberania por aquisição em pactos entre o vencido e o vencedor, ou entre o filho e o pai, torna-se evidente que todo súdito tem liberdade em todas aquelas coisas cujo direito não pode ser transferido por um pacto. Já no capítulo 14 mostrei que os pactos no sentido de cada um abster-se de defender seu próprio corpo são nulos. Portanto:

Se o soberano ordenar a alguém (mesmo que justamente condenado) que se mate, se fira ou se mutile a si mesmo, ou que não resista aos que o atacarem, ou que se abstenha de usar os alimentos, o ar, os medicamentos, ou qualquer outra coisa sem a qual não poderá viver, esse alguém tem a liberdade de desobedecer.

Se alguém for interrogado pelo soberano ou por sua autoridade, relativamente a um crime que cometeu, não é obrigado (a não ser que receba garantia de perdão) a confessá-lo, porque ninguém (conforme mostrei no mesmo capítulo) pode ser obrigado por um pacto a recusar-se a si próprio.

Por outro lado, o consentimento de um súdito ao poder soberano está contido nas palavras eu autorizo, ou assumo como minhas, todas as suas ações, nas quais não há qualquer espécie de restrição a sua antiga liberdade natural. Porque ao permitir-lhe que me mate não fico obrigado a matar-me quando ele mo ordena. Uma coisa édizer mata-me, ou a meu companheiro, se te aprouver, e outra coisa é dizer matar-me-ei, ou a meu companheiro. Segue-se portanto que:

Ninguém fica obrigado pelas próprias palavras a matar-se a si mesmo ou a outrem. Por conseqüência, que a obrigação que às vezes se pode ter, por ordem do soberano, de executar qualquer missão perigosa ou desonrosa, não depende das palavras de nossa submissão, mas da intenção, a qual deve ser entendida como seu fim. Portanto, quando nossa recusa de obedecer prejudica o fim em vista do qual foi crida a soberania, não há liberdade de recusar; mas caso contrário há essa liberdade.

Por esta razão, um solado a quem se ordene combater o inimigo, embora seu soberano tenha suficiente direito de puni-lo com a morte em caso de recusa, pode não obstante em muitos casos recusar, sem injustiça, como quando se faz substituir por um soldado suficiente em seu lugar, caso este em que não está desertando do serviço do Estado. E deve também dar-se lugar ao temor natural, não só o das mulheres (das quais não se espera o cumprimento de tão perigoso dever), mas também o dos homens de coragem feminina.

Quando dois exércitos combatem há sempre os que fogem, de um dos lados, ou de ambos; mas quando não o fazem por traição, e sim por medo, não se considera que o fazem injustamente, mas desonrosamente. Pela mesma razão, evitar o combate não é injustiça, é cobardia. Mas aquele que se alista como solado, ou toma dinheiro púbico emprestado, perde a desculpa de uma natureza timorata, e fica obrigado não apenas a ir para o combate, mas também a ele não fugir sem licença de seu comandante. E quando a defesa do Estado exige o concurso simultâneo de todos os que são capazes de pegar em armas, todos têm essa obrigação, porque de outro modo teria sido em vão a instituição do Estado, ao qual não têm o propósito ou a coragem de defender.

Ninguém tem a liberdade de resistir à espada do Estado, em defesa de outrem, seja culpado ou inocente. Porque essa liberdade priva a soberania dos meios para proteger-nos, sendo portanto destrutiva da própria essência do Estado. Mas caso um grande número de homens em conjunto tenha já resistido injustamente ao poder soberano, ou tenha cometido algum crime capital, pelo qual cada um deles pode esperar a morte, terão eles ou não a liberdade de se unirem e se ajudarem e defenderem uns aos outros?

Certamente que a têm: porque se limitam a defender sus vidas, o que tanto o culpado como o inocente podem fazer. Sem dúvida, havia injustiça na primeira falta a seu dever; mas o ato de pegar em armas subsequente a essa primeira falta, embora seja para manter o que fizeram, não constitui um novo ato injusto. E se for apenas para defender suas pessoas de modo algum será injusto. Mas a oferta de perdão tira àqueles a quem é feita o pretexto da defesa própria, e torna ilegítima sua insistência em ajudar ou defender os restantes.

Quanto às outras liberdades, dependem do silêncio da lei. Nos casos em que o soberano não tenha estabelecido uma regra, o súdito tem a liberdade de fazer ou de omitir, conformemente a sua discrição. Portanto essa liberdade em alguns lugares é maior e noutros menor, e em algumas épocas maior e noutras menor, conforme os que detêm a soberania consideram mais conveniente. Por exemplo, houve um tempo na Inglaterra em que um homem podia entrar em suas próprias terras, desapossando pela força quem ilegitimamente delas se houvesse apossado. Mas posteriormente essa liberdade de entrada á força foi abolida por um estatuto que o rei promulgou no Parlamento. E em alguns lugares do mundo os homens têm a liberdade de possuir muitas esposas, sendo que em outros lugares tal liberdade não é permitida. (Ibidem, cap. XXI, p. 132-4)

Este ponto é delicado, e devemos insistir nele. O soberano não perde a soberania se não atende aos caprichos de cada súdito. Mas, se deixa de proteger a vida de determinado indivíduo, este indivíduo (e só ele) não lhe deve mais sujeição. Os outros não podem aliar-se ao desprotegido, porque o governante continua a protegê-los. E pouco importa se o soberano fere o (ex-) súdito tendo ou não razão (afinal, repetimos, ninguém pode julgar o soberano).

O que desfaz a sujeição política é que o governante não confia mais no súdito, e prendendo-o com ferros liberta-o das obrigações jurídicas que assumiu para com ele (em inglês bond significa tanto grilhão quanto obrigação). O soberano não está atado pelas leis humanas de justiça, por isso, de seu ponto de vista, não há diferença em ele castigar um culpado ou agredir um inocente. Já o súdito, se é súdito, é porque prometeu obedecer a fim de não morrer na guerra generalizado; por isso, de seu ponto de vista tanto faz a sua vida ser ameaçada por um soberano impiedoso e iníquo, quanto por um governante que o julgou concedendo-lhe a mais ampla defesa. O que temos, em todos os casos, é o mesmo esquema: um governante que fere e, por isso, um súdito que recupera sua liberdade natural.

O Estado, o medo e a propriedade - Este esquema mostra que, no Estado absoluto de Hobbes, o indivíduo conserva um direito à vida talvez sem paralelo em nenhuma outra teoria política moderna. Só para compararmos com Locke (caps. 2 e 4 do Segundo tratado do governo): o indivíduo que comete crime grave perde o direito de viver e reduz-se a fera, que por todos deve ser destruída.

Mas esse Estado hobbesiano continua marcado pelo medo. Veja-se a capa da primeira edição do Leviatã (1651), que mostra um príncipe, cuja armadura é feita de escamas que são os seus súditos, brandindo ameaçadora espada. Ou veja-se o próprio nome, "Leviatã", que é de um monstro bíblico, que aparece no Livro de Jó. Hobbes diz: o soberano governa pelo temor (awe) que inflige a seus súditos. Porque, sem medo, ninguém abriria mão de toda a liberdade que tem naturalmente; se não temesse a morte violenta, que homem renunciaria ao direito que possui, por natureza, a todos os bens e corpos?

Devemos, porém, matizar o medo que há no Estado hobbesiano. Primeiro, o Leviatã não aterroriza. Terror existe no estado de natureza, quando vivo no pavor de que meu suposto amigo me mate. Já o poder soberano apenas mantém temerosos os súditos, que agora conhecem as linhas gerais do que devem seguir para não incorrer na ira do governante. Segundo, o indivíduo bem comportado dificilmente terá problemas com o soberano.

"Mas poderia aqui objetar-se que a condição de súdito é muito miserável, pois se encontrar sujeita aos apetites e paixões irregulares daquele ou daqueles que detêm em suas mãos poder tão ilimitado. Geralmente os que vivem sob um monarca pensam que isso é culpa da monarquia, e os que vivem sob o governo de uma democracia, ou de outra assembléia soberana, atribuem todos os inconvenientes a essa forma de governo.

Ora, o poder é sempre o mesmo, sob todas as formas, s estas forem suficientemente perfeitas para proteger os súditos. E isto sem levar em conta que a condição do homem nunca pode deixar de ter uma ou outra incomodidade, e que a maior que é possível cair sobre o povo em geral, em qualquer forma de governo, é de pouca monta quando comparada com as misérias e horríveis calamidades que acompanham a guerra civil, ou aquela condição dissoluta de homens sem senhor, sem sujeição às leis e a um poder coercitivo capaz de atar suas mãos, impedindo a rapina e a vingança.

E também sem levar em conta que o que mais impulsiona os soberanos governantes não é qualquer prazer ou vantagem que esperem recolher do prejuízo ou debilitamento causado a seus súditos, em cujo vigor consiste sua própria força e glória, e sim a obstinação daqueles que, contribuindo de má vontade para sua própria defesa, tornam necessário que seus governantes deles arranquem tudo o que podem em tempo de paz, a fim de obterem os meios para resistir ou vencer a seus inimigos, em qualquer emergência ou súbita necessidade. Por que todos os homens são dotados por natureza de grandes lentes de aumento (ou seja, as paixões e o amor de si), através das quais todo pequeno pagamento aparece como um imenso fardo; mas são destituídos daquelas lentes prospectivas (a saber, a ciência moral e civil) que permitem ver de longe as misérias que os ameaçam, e que sem tais pagamentos não podem ser evitadas." (Ibidem, cap. XVIII, p. 112-3)

E, terceiro, o Estado não se limita a deter a morte violenta. Não é produto apenas do medo à morte - se entramos no Estado é também com uma esperança (em filosofia, o medo e a esperança são um velho par) de ter vida melhor e mais confortável.

O conforto, em grande parte, deve-se à propriedade. A sociedade burguesa, que no tempo de Hobbes já luta para se afirmar, estabelece a autonomia do proprietário para fazer com seu bem o que bem entenda. Na Idade Média, a propriedade era um direito limitado, porque havia inúmeros costumes e obrigações que a controlavam. Por exemplo, o senhor de terras não podia impedir o pobre de colher espigas, ou fruas, na proporção necessária para saciar a fome. Se havia um servo ligado à gleba, nem este podia deixá-la, nem o senhor podia expulsá-lo para dar outro uso à terra. Mas, nos tempos modernos, o proprietário adquire o direito não só ao uso do bem e a seus frutos (que somam-se na palavra usufruto), como também ao abuso: isto é, o direito de alienar o bem, de destruí-lo, vendê-lo ou dá-lo. Hobbes reconhece o fim das velhas limitações feudais à propriedade - e nisso ele está de acordo com as classes burguesas, empenhadas em acabar com os direitos das classes populares à terra comunal ou privada - mas, ao mesmo tempo, estabelece um limite muito forte à pretensão burguesa de autonomia: todas as terras e bens estão controlados pelo soberano.

"A distribuição dos materiais dessa nutrição é a constituição do meu, do teu e do seu. Isto é, numa palavra, da propriedade. E em todas as espécies de Estado é da competência do poder soberano. Porque onde não há Estado, conforme já se mostrou, há uma guerra perpétua de cada homem contra seu vizinho, na qual portanto cada coisa é de quem a apanha e conserva pela força, o que não é propriedade nem comunidade, mas incerteza. O que é a tal ponto evidente que até Cícero (um apaixonado defensor da liberdade), numa arenga pública, atribuiu toda propriedade às leis civis: "Se as leis civis",, disse ele, "alguma vez forem abandonadas, ou negligentemente conservadas (para não dizer oprimidas), não haverá nada mais que alguém possa estar certo de receber de seus antepassados, ou deixar a seus filhos". E também: "suprimi as leis civis, e ninguém mais saberá o que é seu e o que é dos outros". Visto portanto que a introdução da propriedade é um efeito do Estado, que anda pode fazer a não ser por intermédio da pessoa que o representa, ela só pode ser um ato do soberano, e consiste em leis que só podem ser feitas por quem tiver o poder soberano. Bem o sabiam os antigos, que chamavam Nómos (quer dizer, distribuição) ao que nós chamamos lei, e definiam a justiça como a distribuição a cada um do que é seu.

 

Nesta distribuição, a primeira lei diz respeito à distribuição da própria terra, da qual o soberano atribui a todos os homens uma porção, conforme o que ele, e não conforme o que qualquer súdito, ou qualquer número deles, considerar compatível com a equidade e com o bem comum. Os filhos de Israel eram um Estado no deserto, e careciam dos bens da terra, até ao momento em que se tornaram senhores da Terra Prometida, a qual foi posteriormente dividida ente eles, não conforme sua própria discrição mas conforme a discrição do sacerdote Eleazar e do general Josué. Os quais, quando já havia doze tribos, ao fazer delas treze mediante a subdivisão da tribo de José, apesar disso dividiram a terra em apenas doze porções, e não atribuíram qualquer terra à tribo de Levi, atribuindo-lhe a décima parte da totalidade dos frutos da terra, divisão que portanto era arbitrária. E embora quando um povo toma posse de um território por meio da guerra nem sempre ele extermine os antigos habitantes (como fizeram os judeus), deixando suas terras a muitos, ou à maior parte, ou a todos, é apesar disso evidente que posteriormente essas terras passam a ser patrimônio do vencedor, como aconteceu com o povo da Inglaterra, que recebeu todas as suas terras de Guilherme, o Conquistador.

De onde podemos concluir que a propriedade que um súdito tem em suas terras consiste no direito de excluir todos os outros súditos do uso dessas terras, mas não de excluir o soberano, quer este seja uma assembléia ou um monarca. Dado que o soberano quer dizer o Estado (cuja pessoa ele representa), se entende que nada faz que não seja em vista da paz e segurança comuns, essa distribuição das terras deve ser entendida como realizada em vista do mesmo. Em conseqüência, qualquer distribuição que se faça em prejuízo dessa paz e dessa segurança é contrária à vontade de todos os súditos, que confiaram a paz e a segurança de suas vidas à discrição e consciência do soberano, e assim essa distribuição deve, pela vontade de cada um deles, ser considerada nula. É certo que um monarca soberano, ou a maioria de uma assembléia soberana, pode ordenar a realização de muitas coisas seguindo os ditames de suas paixões e contrariamente a sua consciência, e isso constitui uma quebra da confiança e da lei da natureza. Mas isto não é suficiente para autorizar qualquer súdito a pegar em armas contra seu soberano, ou mesmo a acusá-lo de injustiça, ou a de qualquer modo falar mal dele. Porque os súditos autorizaram todas as suas ações, e ao atribuírem-lhe o poder soberano fizeram-nas suas. Mas em que casos as ordens do soberano são contrárias à equidade e à lei de natureza é coisa que será examinada adiante, em outro lugar.

Na distribuição das terras, o próprio Estado pode ter uma porção, possuindo e melhorando a mesma através de seu representante. E essa porção pode ser de molde a tornar-se suficiente para sustentar todas as despesas necessárias para a paz e defesa comuns. O que seria muito verdadeiro se fosse possível conceber qualquer representante que estivesse livre das paixões e enfermidades humanas. Mas sendo a natureza humana o que é, a atribuição de terras públicas ou de um renda determinada para o Estado seria inútil, e faria tender para a dissolução do governo e a condição de simples natureza e guerra, sempre que ocorresse o poder soberano cair nas mãos de um monarca, ou de uma assembléia, que ou fosse excessivamente negligente em questões de dinheiro, ou suficientemente ousada para arriscar o patrimônio público numa guerra lona e dispendiosa.

Os Estados não podem suportar uma dieta, pois não sendo suas despesas limitadas por seu próprio apetite, e sim por acidentes externos e pelos apetites de seus vizinhos, a riqueza pública não pode ser limitada por outros limites senão os que forem exigidos por cada ocasião. Embora na Inglaterra o conquistador tenha reservado algumas terras para seu próprio uso (além de florestas e coutadas, tanto para sua recreação como para a preservação dos bosques), e tenha também reservado diversos serviços nas terras que deu a seus súditos, parece apesar disso que elas não foram reservadas para sua manutenção em sua capacidade pública, mas em sua capacidade natural, pois tanto ele quanto seus sucessores lançaram impostos arbitrários sobre as terras de todos os seus súditos, sempre que tal consideraram necessário. E mesmo que essas terras e serviços públicos tivessem sido estabelecidos como suficiente manutenção do Estado, tal teria sido contrário à finalidade da instituição, pois eram insuficientes (conforme ficou claro, dados esses impostos subsequentes), e além disso estavam sujeitos a alienação e diminuição (conforme foi tornado claro pela posterior pequena renda da coroa). Portanto é inútil atribuir uma porção ao Estado, que pode vendê-la ou dá-la, e efetivamente a vende e a dá quando tal é feito por seu representante.

Compete ao soberano a distribuição das terras do país, assim, como a decisão sobre em que lugares, e com que mercadorias, os súditos estão autorizados a manter tráfico com o estrangeiro. Porque se às pessoas privadas competisse usar nesses assuntos de sua própria discrição, algumas delas seriam levadas pela ânsia do lucro, tanto a fornecer ao inimigo os meios para prejudicar o Estado, quanto a prejudicá-lo elas mesmas, importando aquelas coisas que, ao mesmo tempo que agradam aos apetites dos homens, apesar disso são para eles nocivas, ou pelo menos inúteis. Compete portanto ao Estado (quer dizer, apenas ao soberano) aprovar ou desaprovar tanto os lugares como os objetos do tráfico exterior.

Além do mais, dado que não é suficiente para o sustento do Estado que cada indivíduo tenha a propriedade de uma porção de terra, ou de alguns poucos bens, ou a propriedade natural de alguma arte útil (e não existe arte no mundo que não seja necessária ou para a existência ou para o bem-estar de quase todos os indivíduos), é necessário que os homens distribuam o que são capazes de poupar, transferindo essa propriedade mutuamente uns aos outros, através da troca e de contratos mútuos. Compete portanto ao Estado, isto é, ao soberano, determinar de que maneira devem fazer-se entre os súditos todas as espécies de contrato (de compra, venda, troca, empréstimo, arrendamento), e mediante que palavras e sinais esses contratos devem ser considerados válidos."(Ibidem, cap. XXIV, p. 150-3)

Um pensador maldito - E aqui podemos entender por que Hobbes é, com Maquiavel e em certa media Rousseau, um dos pensadores mais "malditos" da história da filosofia política - pois, no século XVII, o termo "hobbista", é quase tão ofensivo quanto "maquiavélico". Não é só porque apresenta o Estado como monstruoso, e o homem como belicoso, rompendo com a confortadora imagem aristotélica do bom governante (comparado a um pai) e do indivíduo de boa natureza. Não é só porque subordina a religião ao poder político. Mas é, também, porque nega um direito natural ou sagrado do indivíduo à sua propriedade. No seu tempo, e ainda hoje, a burguesia vai procurar fundar a propriedade privada num direito anterior e superior ao Estado: por isso ela endossará Locke, dizendo que a finalidade do poder público consiste em proteger a propriedade. Um direito aos bens que dependa do beneplácito do governante vai frontalmente contra a pretensão da burguesia a controlar, enquanto classe, o poder de Estado; e, como isso é o que vai acontecer na Inglaterra após a Revolução Gloriosa (1688), o pensamento hobbesiano não terá campo de aplicação em seu próprio país, nem em nenhum outro.

O resultado pode parecer frustrante, num pensador que escreveu as três versões de sua filosofia política enquanto o seu país vivia terrível guerra civil (De corpore politico, 1640; De cive, 1642; Leviatã, 1651), e considerava que esses livros ofereciam a única base para fundar um Estado que desse, aos homens, não apenas a sobrevivência, mas a melhor condição material - paz e conforto. "A ciência política não é mais antiga que meu livro De cive", disse ele, desqualificando em especial o pensamento aristotélico, então ainda dominante.

Essa ênfase na ciência, porém, merece nossa atenção. No tempo de Hobbes, o modelo para a ciência estava nas matemáticas. Os teoremas da geometria, por exemplo, não dependem em nada da observação empírica para serem verdadeiros. Quando dependemos da experiência, estamos sempre sujeitos ao engano. Mas, se nos limitamos a deduzir propriedades de figuras ideais, não há risco de erro. E isso, antes de mais nada, porque as figuras geométricas não resultam da observação (não existe, na natureza, círculo ou triângulo perfeito...), mas são criação de nossa mente. Em suma: só podemos conhecer, adequada e cientificamente, aquilo que nós mesmos engendramos. Dessa perspectiva não pode haver ciência, por exemplo, dos corpos animais (biologia) comparável em certeza à geometria.

Assim entendemos o papel do contrato. Na matemática, podemos conhecer porque as figuras foram concebidas, feitas, por nós. Da mesma forma na ciência política: se existe Estado, é porque o homem o criou. Se houvesse sociabilidade natural, jamais poderíamos ter ciência dela, porque dependeríamos dos equívocos da observação. Mas, como só vivemos em sociedade devido ao contrato, somos nós os autores da sociedade e do Estado, e podemos conhecê-los tão bem quanto as figuras da geometria. De um só golpe, o contrato produz dois resultados importantes. Primeiro, o homem é o artífice de sua condição, de seu destino, e não Deus ou a natureza. Segundo, o homem pode conhecer tanto a sua presente condição miserável quanto os meios de alcançar a paz e a prosperidade. Esses dois efeitos, embora a vida do contrato tenha sido abandonada na filosofia política posterior ao século XVIII, continuam inspirando o pensamento sobre o poder e as relações sociais.

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